Página Principal de Nilma Lacerda - escritora, pesquisadora e professora

Diários da palavra escrita

Diário de navegação da palavra escrita na América Latina

Parti, e não sabia da extensão da viagem. Não levava comigo bússola, astrolábio, sextante, cartas de navegação. Nem mesmo máquina fotográfica, gravador, filmadora. O radar é que ia comigo, e me bastavam o radar, o ardor da errância e a palavra escrita para o registro. Ao me ser confiada a tarefa de redigir o diário de bordo, busquei verificar minha competência. Um diário de navegação?

Tantos diários de navegação, cartas ao rei e relatos de naufrágio em minha condição de filha da América Portuguesa. Na virada para o século XXI, um diário sem patrões, que ousa trazer a escrita vulgar como tema de suas observações. Um projeto factível?

Da mesma forma que Marco Polo, não viajo para mim mesma. O jovem veneziano viajava para relatar ao Senhor do Grande Khan as coisas que via e ouvia nas terras por onde passava, as maneiras como lá se vivia. Construía um pacto com o olhar do outro, a quem puxava para acompanhá-lo nos empenhos da viagem, nas asperezas do comércio. Com esse olhar alheio também eu tomo a incerteza de qualquer navegação, e o que trago pode servir para muito, pode servir para pouco. A cada um, a maneira própria de usar.

Incorporo a densidade da ciência à minha bagagem e dispenso o compromisso do saber contínuo e cerrado que pretende. Trabalho no descontínuo, fruto de meu fascínio pelo mosaico, neste projeto inesgotável, impossível enquanto ciência – segundo me diz Roger Chartier.

Tomo a viagem como uma parábola, a palavra escrita como o ponto fixo, mas não evito que a diretriz se movimente no tempo e no espaço. E – se para saber da palavra escrita na América Latina, a Europa é um destino –, este diário, que se pretende serviço e comércio, apenas reconhece essas relações estabelecidas desde a Idade Moderna.

Construída como Latina na mirada do interesse alheio, esta América tem se agarrado nas farpas do vento para sobreviver, como escreve Eduardo Galeano. Voltados, com frequência, “ao mais forte potencial”, seus países têm visto ao longo do tempo expectativas esvanecidas, como escrita a tinta em página exposta à água. Ainda hoje, os avanços obtidos carregam fardos demagógicos, bolsões de injustiça. 

E a escrita subsiste, borrada, ilegível por vezes, mas inequívoca em sua função de comunicar e resistir. Este Diário registra práticas de escrita, reflete sobre elas, buscando evidenciar e entender como as pessoas escrevem, por que escrevem e para que escrevem na América Latina.

Como resultado de quase onze anos de pesquisa, com um ano de pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, ao pé da orientação de Roger Chartier, o Diário tem em fase de finalização um primeiro volume intitulado Deus não tem nada com isso, do qual estão disponíveis alguns segmentos em pdf:

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