Página Principal de Nilma Lacerda - escritora, pesquisadora e professora

Sobre a Obra

Uma fábrica de textos

“A Aurora é coisa de se esperar”? Responda também você, leitor, ao enigma proposto a uma fada meio desacreditada a quem os Meninos da Maré condenaram a “nadar na vala”.  E uma vala fedorenta de favela, já que não conseguia com seus condões mudar coisa alguma naquelas vidas miseráveis.

Viver é feito à mão (Ed. Minguilim), de Nilma Gonçalves Lacerda, é muito mais que um simples livro para jovens. Essa camisa-de-força ETÁRIA não cabe em uma construção literária que se quer, sobretudo, livre das amarrações habituais dos gêneros pré-endereçados.

Trata-se de um trançado de textos gerados por narradores juvenis diversos, mantendo em comum a extraordinária capacidade de criarem um imaginário estimulado por um cotidiano nem sempre enriquecedor. Mas este é um dom das crianças e dos poetas: transgredir a realidade com seu instrumental de descobertas, sonhos, visões e conseguir compor um mundo novo como refrações de caleidoscópio. Como faz a menina Alínquiça que quer ser escritora, mudando o fadário das Marias-tanque-e-fogão. Esse exercício de imaginação da autora é valor e peso de palavras: “A palavra é renda-rede” e a vida deve ser indagada nessa nominação do mundo: “Antanho é coisa de comer?”, “Viver é xadrez trançado?”.

Este é um livro-em-movimento: o tornar-se é a tônica central e permite desvendar o caminho da construção de uma identidade ética, no exercício do conceito de cidadania, de generosidade, de afeto e solidariedade entre os seres humanos e animais. E fique claro: não são metamorfoses em nível fantástico, fadístico, mas conquistas sobre o dia a dia do preconceito e das alienações centenárias. Isto com humor e poesia, jamais pedagógico mas educativo, no sentido de um saber a ser testado e revigorado na obra humana em progresso.

Por uma ponta da história vêm Alinquiça e seus Cavaleiros da Tábua Redonda tentando libertar a corajosa Trespê (pequena, preta e pobre), apelido de Maria Joana D’Arc, a outra entrada desse túnel de textos. Pois este objeto-livro, contornável, possui duas entradas, correspondentes a seus dois títulos: Viver é feito à mão e Viver é risco em vermelho, cujo percurso desemboca no meio, na criação da zona de confraternização da leitura e dos textos, quando personagens sonham a Utopia e a aurora tem o seu lugar.

Tecer um livro, urdir essa trama com a sensibilidade generosa capaz de ver na criança marginalizada um potencial de riqueza a ser cavado e esculpido: eis a experiência que o leitor de qualquer idade terá, no contato com proposta literária tão acima da habitual leitura para esse público. Mas quando a arte literária é fecunda e verdadeira ultrapassa os estreitos limites dos gêneros: quem não se envolverá com esse bando de crianças a falar de seu amanhã?

A diagramação causa impacto, obrigando ao manuseio não linear do enredo que, numa construção cuidadosa, vai oferecendo os momentos de reflexão de seus narradores. Essa face arquitetural e rigorosa é oferecida de maneira lúdica, pois o leitor irá discutindo, aos poucos, com a narradora, os momentos de decisão. E são etapas de amadurecimento para ambos: as crianças armam o jogo das estripulias, das invenções familiares, da vivência dos adultos e contaminam o leitor com suas procuras, tudo ficando em nível de conquista. É preciso colaborar intensamente no ato de leitura para poder viver o ritmo do texto.

Os momentos de sofrimento serão redimensionados com os olhos da visão de um mundo novo: Maria Joana se “descobre” D’Arc no registro de nascimento que desconhecia, a personalidade ganha força, que já tinha pelos embates com a vida. A marginalização social não é reduto de passividade mas de movimentação e criatividade. Maria das Dores acabará como Maria da Anunciação no trânsito de seus medos e solidão. Afinal, é preciso descobrir o que significa “querida” para quem jamais soube de relações de afeto.

Dentro de uma grande quantidade de livros para jovens publicados nos últimos anos nota-se a preocupação de ampliar critérios de valor a serem absorvidos na vida em sociedade. Entretanto, nem sempre se leva em consideração a apreensão do movimento do mundo verbal, em sua importante e primordial tarefa de nomear e rotular coisa, gestos, sentimentos. Aqui, em Viver é feito à mão, consegue-se a magia da palavra em estado de questionamento, desfazendo as barreiras do já dito, do significado petrificado pelos conceitos sociais.


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Sonia Brayner
São Paulo: O Estado de São Paulo, suplemento Cultura
24 de novembro de 1990

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