"No vestiário, o gordo Didier me agarrou pelos cabelos. Senti sua outra mão em cima de mim. O ar gelou minha barriga. O gordo Didier tinha tirado minha calcinha. Ele se contorcia de rir. Dezenas de garotos metiam a cabeça na porta: suas bocas, escancaradas, gritavam e riam, como se estivessem na frente das jaulas dos macacos. Atrás da minha boca fechada, se acumula o silêncio que vai dar a mim – a mais tímida da turma – a força de me vingar. Eu não sou macaco."
A jovem mais frágil e tímida da turma sofre violenta humilhação em público. Objeto de risos dos colegas – como os macacos que coçam a bunda no zoológico –, ela afirma para si própria, com raiva e decisão: "Eu não sou macaco", e começa a elaborar um plano de vingança. Amassa o silêncio dentro de si, inicia o trajeto que vai levá-la, perplexa, à mesma e outra descoberta: "Eu não sou macaco."
A descoberta radical daquilo que se é configura-se como território íntimo e caro a Virginie Lou, essa escritora francesa apresentada pelo crítico Jean Perrot a um pequeno público na Casa da Leitura, no Rio de Janeiro. Perrot finalizava sua palestra e anunciou a autora como "alguma coisa muito nova se apresentando na literatura juvenil francesa". Lembrou, ainda, a correspondência do nome francês com um outro, capaz de espalhar os ventos do novo por todos os faróis que mostravam o caminho do século XX – Virginia Woolf.
Encontrei e li, quase imediatamente, Le Miniaturiste (O homem das miniaturas), o título por ele indicado. Lá estava o novo que Perrot apontava: a coragem de mostrar ao jovem aquilo que se é, essa natureza humana incompleta, esse sendo que que caracteriza o humano, essa cisão no indivíduo, bem e mal que disputam terreno, e se misturam na mesma pessoa.
Tendo a filosofia das Luzes e uma sabedoria ancestral como pano de fundo, investindo na leitura e na escrita como valores humanistas, Virginie Lou propicia, neste livro, discussões que possam trazer respostas para questões de sempre: em que consiste a natureza humana, quais as diferenças entre o ser humano e outros animais, que limites não devem ser ultrapassados nas relações entre as pessoas? A ética é o centro de suas preocupações, mas a autora toca sem luvas na origem dos conflitos humanos. A fragrância do humano está inteira e persistente nos seus personagens – como persistiu em meus dedos a fragrância da lavanda, colhida nas flores do jardim da casa dela, em Arles, no sul da França, próximo ao célebre café em que Van Gogh representa as paixões humanas, e pinta, do lado de fora, outras lâmpadas na noite estrelada, para iluminar as sombras da ambivalência no trânsito da existência humana.
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